Neste tema, conheceremos algumas das produções dos povos indígenas que envolvem a arte e o artesanato, objetivando a análise, ampliação e ressignificação destes termos.
Destacamos os grafismos, as pinturas rupestres, a pintura corporal, as cestarias e as esculturas indígenas. A abordagem busca a conceituação do tema, além de dar visibilidade às produções que reafirmam a identidade singular e, ao mesmo tempo, diversa dos povos indígenas territorializados no Brasil.
Bons estudos!
Saiba mais o que vamos aprender neste tema tão interessante assistindo ao vídeo da professora Cristina a seguir.
Arte e artesanato são definições comuns no cotidiano da cultura ocidental europeia. Contudo, como essas definições ocorrem nas sociedades indígenas? É possível uma analogia? Como poderíamos estabelecer parâmetros comparativos, considerando a diversidade de cosmologias e padrões de organização de mundo existente nas sociedades indígenas? Assista ao vídeo a seguir em que a professora Cristina fala mais sobre isso.
Considerados termos de uso corrente nas sociedades ocidentais, os estudos que envolvem a temática partem da premissa de que as sociedades indígenas não partilham da ideia de arte e artesanato da tradição ocidental. Assim, quando utilizamos esses dois termos, é importante ter essa distinção. Além disso, considerando a diversidade linguística dos povos indígenas, as palavras arte e artesanato não encontram ou não possuem correspondentes com mesmos significados que a elas inferimos.
A discussão relativa à temática tem se pautado, também, acerca do termo "artefato", a partir das contribuições da etnologia, antropologia, museologia dentre outras áreas de pesquisa.
Em seus estudos que abordam arte e artefato, Els Lagrou (2010) destaca que a "grande diferença reside na inexistência entre os povos indígenas, de uma distinção entre artefato e arte, ou seja, entre objetos produzidos para serem usados e outros para serem somente contemplados, distinção esta que nem a arte conceitual chegou a questionar entre nós".
Pode-se falar em "artes indígenas", dada às singularidades de cada povo indígena de manifestar-se, tanto nas formas de manipular os componentes dessas produções (pigmentos, plumas, fibras vegetais, argilas, madeiras, pedras etc.) quanto nos suportes dessas expressões (além de artefatos, o próprio corpo humano, construções ou paredes rochosas, árvores etc.). Também não podemos deixar de registrar que há produções no âmbito da cultura material (artefatos, construções) e da cultura imaterial (cânticos, danças).
No senso comum da sociedade ocidental, relacionar as produções indígenas ao termo "artesanato" pode vir associado à uma valoração que minimiza essas expressões culturais, empobrecendo o conteúdo simbólico presente em suas cestarias, esculturas, grafismos, dentre outros. Na perspectiva do artesanato, estaria incutida a ideia de que o artesão não cria nada de novo, mas repete o padrão da tradição.
O desconhecimento da diversidade e singularidade do universo indígena, assentado no conceito ocidental tradicional de arte, tem favorecido a ideia genérica de que povos indígenas não são produtores de arte, mas de artesanato. Contudo, estudos de Velthen (2000, 2012), Lagrou (2010), Vidal (2000), dentre outros pesquisadores, a partir dos estudos sobre "artefatos", têm apontado em diversas áreas quão vasto é esse campo para pesquisa e desmoronado essa premissa, demonstrando a riqueza e a dinamicidade cultural dos povos indígenas em suas produções:
Determinados artefatos depositados em museus são conhecidos como objetos etnográficos. Representam importantes fontes de consulta para um amplo leque de estudos interpretativos na área das ciências humanas: cultura material, tecnologias tradicionais, antropologia da arte, etno-história e história da arte, processos migratórios, trocas e apropriações culturais como resultado das situações de contato. Cabe, então, perguntar por que as reservas técnicas dos museus etnográficos não estão abarrotadas de pesquisadores debruçados sobre tais fontes de informação? (VELTHEM, p. 51, 2012).
Lucia Hussak Van Velthem (2000, p. 53-65), a partir dos estudos de Savary (1989) e Gurian (2001), acerca da compreensão do que representa um objeto etnográfico, destaca que:
(...) ele é criado em um contexto particular, referente a uma sociedade humana específica onde está inserido em muitos planos: técnico, produtivo, estético, simbólico. Apesar de possuir elementos de ligação, pois se trata igualmente de uma coisa, não se confunde com o objeto industrial devido a determinadas características. Um objeto etnográfico é o resultado de um trabalho manual, elaborado de acordo com materiais e técnicas locais e cujo aspecto formal obedece a parâmetros da sociedade que o produziu.
Quanto à discussão relacionada a quem produz o objeto (artesão/artista), Lagrou (2010) destaca que não há, na maior parte das sociedades indígenas brasileiras, uma especialização ou possível desconexão entre o fazer e as preocupações do grupo.
Quando esse fazer ou técnica está relacionado à função feminina ou masculina "cada membro da sociedade pode se tornar um especialista na sua realização. Porém, sempre há os que se sobressaem, estes são considerados ‘mestres’." Para exemplificar, Lagrou descreve a organização dos Kaxinawa (família linguística Pano, Acre), para quem:
(...) a mestre na arte da tecelagem é chamada de ainbu keneya, ‘mulher com desenho’ ou ainda de txana ibu ainbu, ‘dona dos japins’, ou seja, liderança ritual feminina da aldeia, responsável pela organização do trabalho coletivo do preparo do algodão. Este mesmo título, ‘dona dos japins’, é dado às mulheres que lideram o canto feminino durante a performance ritual. O japim é um pássaro que tece elaborados ninhos alongados, pendurados nos galhos das árvores. Em cantos rituais, seu ninho é chamado de txana disi, ‘rede do japim’ e assim o pássaro serve de metáfora para indicar a excelência na tecelagem. (LAGROU, 2010).
Além de definir funções para a produção de determinados objetos, a própria fabricação destes também pode estar vinculada a alguma tradição cosmológica significativa de determinado povo, organizadora do mundo indígena. A lógica clânica, de divisão das metades, imprescindível na organização social dos povos do tronco linguístico Macro-Jê (Kaingang, Bororo, Xerente, dentre outros) também está presente na pintura corporal e no trançado da cestaria, caracterizando a identidade do grupo.
O uso de determinados adornos, enfeites ou artefatos também encontram regras específicas em cada povo. Seja por faixa etária, gênero, grupo clânico, atividade exercida pelo indivíduo ou pelo grupo. Um exemplo, citado por Lagrou está entre os Kayapó-Gorotire (Jê), cujo “direito de uso de certos enfeites é condicionado pelo nome da pessoa”.
Para Langdon (2000, p. 86), “a arte estabelece uma ligação entre o sagrado e o profano. A expressão artística não se limita aos objetos sagrados, mas também está presente nos objetos da vida cotidiana”. Podemos verificar as nuances desta afirmação ao analisar a relação existente nos mitos criacionistas de alguns povos indígenas e suas aplicações na produção de artefatos, pinturas ou adornos corporais e ritualísticas.
A importância da pintura corporal para a identidade do povo Xerente, por exemplo, é descrita por Nimuendajú a partir do mito de origem das associações femininas e masculinas, em um:
Episódio em que Sol e Lua enganam moradores de uma aldeia, pintando-se nos estilos - até então desconhecidos - das associações, para obter formigas comestíveis. Os moradores não os reconhecem, pois a cada vez apresentam-se com pinturas diferentes. Os motivos da pintura são apreciados, e de sua imitação pelos moradores surgem as associações. (SILVA e FARIAS, p. 94, 2000)
Entre o povo Kaingang, pertencente à família linguística Jê (terceira maior etnia indígena do Brasil em população), suas pinturas corporais rituais e seu culto aos mortos (kikikoj) e a produção das formas e trançados da cestaria está fortemente vinculada ao seu mito criador e definidor de suas metades clânicas, conforme relato coletivo de um grupo de professores Kaingang do Paraná:
Nos estudos relativos ao povo Kaingang e sua cosmologia (BORBA, 1908; NIMUENDAJU, 1993; VEIGA, 1999) destaca-se a dualidade clânica, Kamé e Kairu, definidora das funções dos indivíduos na sociedade, das regras de nominação, casamento, pintura corporal e participação em rituais. Para Parellada (2006), "a pintura está sempre associada aos qualificativos ror e téj, respectivamente, baixo-redondo ou grosso-compacto, e alto-comprido ou fino difuso".
Antigamente, houve uma grande inundação e os Kaingang, Kairucrés, Kamés e os Curutons tinham fugido para a Serra chamada Crijijimbé. Os Kaingang conseguiram chegar à terra firme e os que ficaram para trás ficaram pendurados nos galhos e os que não conseguiram nadar se afogavam e ficaram no centro da Serra. Os que ficaram nos galhos, ficaram dias sem comer, os Kaingang viraram macacos e os Curutons viraram bugios. A inundação secou e os Kaingang se estabeleceram nas proximidades da Serra Crijijimbé onde permaneceram. Anos depois, Kairucrés, Kamés e Kaingang começaram a sair do local na beira de um riacho do Paraná. Já os Curutons, foram buscar algumas coisas para comer no alto da Serra e por preguiça não voltaram mais. Eles eram considerados como escravos pelos Kaingang que colocaram fogo no mato onde os Curutons moravam e eles foram queimados. Com a cinza do fogo, os Kairucrés começaram a desenhar nas paredes da Serra, criando imagens de tigres, antas e o tamanduá. E os Kamés, desenharam os leões americanos (migkóság) e as serpentes (como cobras venenosas), vespas. Depois, foram se juntar com os Kaingang. Mais tarde, houve extermínio desses povos por esses animais criados por eles. Resolveram sair do local, fizeram com o tronco de uma árvore, uma ponte frágil onde depois de passarem por cima eles iam derrubar a ponte. Alguns felinos foram atrás dos fugitivos, mas ao passar sobre a ponte, todos os felinos caíram no rio. Alguns seguraram na barranca, os que se salvaram tornaram-se tigres na terra e os que caíram na água se tornaram leões marinhos. Os sobreviventes dos Kairukrés, Kamés e Kaingang chegaram a um campo grande onde hoje é localizado os Campos Gerais. Todos se casaram. Kairucrés, Kamés e Kaingang se juntaram, casando entre eles e formando novos descendentes a esses povos chamados Kaingang. (PARANÁ, 2010, p. 32).
Essa mesma distinção, segundo Silva (2001), aparece na cestaria, produzida a partir da taquara: cestos longos ou compridos (cargueiros) são denominados kre téj e os cestos redondos ou baixos, kre ror, conforme podemos ver nas fotos a seguir.
Imagem 1: kre téj, com padrão gráfico rór, produzido por artesã Kaingang da TI Rio das Cobras, Nova Laranjeiras - PR.
Imagem 2: kre ror, produzido por artesã Kaingang da TI Ivaí, Manoel Ribas - PR.
Fotos: Cristina Cremoneze.
Entre os Tapirapé (MT), povo da família linguística Tupi-Guarani, os motivos que os levam à produção de grafismos e artefatos são, segundo Vandimar Marques Damas, internos e externos:
Em relação aos fatores internos, que permeiam todas as outras práticas sociais, bem como por fatores de ordem mitológica e ritualística, por processos que marcariam transformações no modo de concepção e uso do corpo; as divisões entre os grupos; a função é pôr em funcionamento a rede de sociabilidade. Quanto aos fatores externos, considero aqui o comércio desses artefatos. (DAMAS, 2014, p. 824)
Na atualidade, a motivação externa para a produção de grafismos e artefatos pelo povo Tapirapé pode ser vista em centros urbanos próximos ou mesmo em Goiânia, onde vão para estudar:
Eles levam pulseiras, colares, esteiras, cuias e maracás. É possível encontrar em sites europeus, que comercializam produtos artesanais, cuias e maracás fabricados pelos Tapirapé. Geralmente os Tapirapé se dedicam mais na fabricação de algum artefato que será utilizado por eles na aldeia ou em algum ritual. Podemos ver como exemplo as máscaras ou de colar, que serão utilizados nos rituais, a fabricação desses duram dias e podem envolver várias pessoas. Enquanto que a fabricação deles será comercializada com pessoas não Tapirapé, não ganham tanta dedicação. Evidentemente que são bem feitos e tem a sua beleza. Entre os Tapirapé existem códigos para avaliar a estética de um objeto. (DAMAS, 2014, p. 824-825)
Ainda com relação à produção dos objetos, na atualidade, também existe a preocupação de se ensinar às novas gerações conhecimentos acerca de seus diferentes tipos, usos e técnicas. Neste sentido, a professora Jacira Jera Fernandes, do povo Guarani Mbya (PR), da família linguística Tupi-Guarani, ressalta o trabalho realizado com seus alunos no ensino escolar:
É importante que nos livros que vamos produzir existam desenhos e fotos dos trabalhos feitos pelos pais e avós dos alunos. Nós também pesquisamos como é feito cada tipo de artesanato. Por exemplo: o balaio [varai] é feito de fibras de taquara; para fazer o arco [guyrapa] e as flechas, usamos fibras de palmeira torcida, penas de pássaros e madeira fina raspada. A corujinha [urukure'a ra'angaa] e outros bichinhos que fazemos, são feitos de madeira grossa chamada leiteira. O cachimbo [petyngua] é feito com nó de pinho. Os colares [mbo'y] são feitos com uma semente que chamamos kapi'a (rosário) e de outra semente pretinha que chamamos yvaú. O chocalho [mbaraka mirĩ] é feito de porungo (cabaça) e o cabo da taquara, a trança é feita com embira e usamos pena de aves. O machadinho [haxa'i] é feito de nó de pinho e o cabo é de taquara. (PARANÁ, 2010, p. 27).
Nas imagens a seguir você poderá ver algumas artes produzidas pelos Guarani.
Imagem 3: cesto [varai]: produzido por artesã Guarani da TI Sambaqui do Guaraguaçu, Pontal do Paraná- PR.
Imagem 4: corujinha [urukure'a ra'angaa] produzido por artesã Guarani da TI Tekoha Añeteté, Diamante D'Oeste - PR.
Fotos: Cristina Cremoneze.
Na religiosidade Guarani, a casa de reza [Opy para os Guarani Mbya e Oy Gwatsy para os Guarani Nhandeva] é de extrema importância, pois em seu interior são desenvolvidos cânticos, danças dentre outras atividades essenciais na formação da pessoa. São fundamentais para a realização dessas atividades alguns instrumentos como o chocalho [mbaraka], considerado um instrumento de uso masculino e o takwa [para os Avá Guarani] ou takuapu [para os Guarani Mbya], uma espécie de bastão de taquara, de uso feminino, a rabeca, o violão e o tambor. Veja nas fotos ao lado .
Imagem 5: chocalho [mbaraka mirĩ]: produzido por artesã Guarani da TI Ocoy, São Miguel do Iguaçu - PR.
Imagem 6: chocalho [mbaraka mirĩ] produzido por artesã Guarani da TI Palmeirinha do Iguaçu, Mangueirinha - PR.
Sobre a utilização de instrumentos musicais diversos, o professor Guarani Vanderson Lourenço afirma que: “antigamente usavam o mbaraka e o takwa para entoar os cânticos porque não tinha violão, violino e nem tambor. Mas hoje usamos vários instrumentos para cantar.” (PARANÁ, 2010, p. 33).
Imagem 7: Apresentação cultural. Mulheres Avá Guarani com o takwa, TI Tekoha Porã, Guaíra - PR.
Foto: Cristina Cremoneze.
Está ficando muito interessante aprender sobre arte e artesanato indígena, não é mesmo? Então, para você conhecer mais sobre o assunto assista ao vídeo que a professora Cristina preparou a seguir.
O campo de pesquisas multidisciplinares das pinturas rupestres está invariavelmente ligado com os estudos da arqueologia e o povoamento das Américas. Para Pessis e Guidon (2000, p. 19):
(...) sabe-se que os registros rupestres de toda a América são antigos e que a prática gráfica com aplicação de corantes nas paredes de abrigos e sobre afloramentos rochosos existe desde o pleistoceno final. As mais recentes descobertas confirmam que os registros rupestres pré-históricos apareceram de maneira quase concomitante na Europa, Américas, África e Austrália. (...) pode-se afirmar que na maior parte das regiões rochosas do Brasil e em particular na região Nordeste existem abrigos ou grutas que serviram de suporte para essas manifestações picturais, sobretudo onde houve condições de preservação.
Nos estudos das expressões pictóricas rupestres, as pesquisadoras Anne-Marie Pessis e Niède Guidon afirmam que sua importância está em "fornecer perfis comparáveis a outros perfis da cultura material e que possam ser situados em unidades espaços-temporais." (2000, p. 20).
Também destacam que "as tradições de pintura e gravura pré-históricas poderiam ser comparáveis a famílias linguísticas, no interior das quais as línguas evoluem. As manifestações gráficas rupestres também evoluem". Alertam, ainda, que "qualquer proposta explicativa não pode ser consequência de análise de uma única fonte de cultura material, mas deve ser resultado da convergência de diferentes fontes." (2000, p. 21).
Na ocupação do território do Paraná, nos arenitos dos Campos Gerais e algumas rochas do Terceiro Planalto, há pinturas rupestres que, segundo Parellada (2006), podem abranger períodos entre 4.000 e 10.000 anos atrás, sendo executadas até aproximadamente 300 anos atrás. Nas descrições da autora:
As pinturas são, geralmente, figura de animais associados a representações geométricas, além de seres humanos, em tons avermelhados, marrons e preto e, muito raramente, em amarelo. Alguns animais foram representados em fila, de perfil, associados a grades, e vistos de cima ou de frente. Em vários abrigos existem pinturas geométricas abstratas, como pontos, círculos e linhas, mais recentes, que sobrepõem figuras de animais, geralmente em vermelho e marrom. (PARELLADA, 2006, p. 24)
Para Silva (2001), os atuais grafismos Kaingang téj e rór, já estiveram presentes em alguns painéis rupestres do Brasil Meridional (Ilha do Campeche e Morro do Avencal-SC, Araçá-RS), bem como em panelas de barro Proto-Jê.
Imagem 8: padrão gráfico téj, produzido por artesã Kaingang da TI São Jerônimo, São Jerônimo da Serra-PR.
Imagem 9: padrão gráfico ror, produzido por artesã Kaingang da TI Rio das Cobras, Nova Laranjeiras - PR.
Fotos: Cristina Cremoneze.
Agora, vamos aprender mais sobre as pinturas rupestres assistindo ao vídeo da professora Cristina, ela comentará mais detalhes a respeito dessas artes. Acompanhe!
No registro de Caminha, em 1500, a admiração do escrivão real ao descrever aspectos corporais, adornos ("traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha") e pinturas corporais ("pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas") marca a impactante visão dos europeus acerca da identidade dos povos indígenas, com produções para além da compreensão de mundo e de pessoa que os estrangeiros possuíam.
A compreensão das sociedades indígenas e sua organização social passa também pelo entendimento do significado de suas pinturas e adornos corporais. Silva (2001), a partir dos estudos de Viveiros de Castro, destaca que:
As sociedades do Alto Xingu, por exemplo, não fazem distinção entre processos fisiológicos e processos sociológicos ou entre transformações corporais e mudanças na identidade social ou na posição social. Na concepção destas sociedades, ‘o corpo humano necessita ser submetido a processos intencionais, periódicos de fabricação’. Sendo assim, ‘a natureza humana é literalmente fabricada, modelada pela cultura’. (VIVEIROS DE CASTRO, 1979, p. 31-32)
Tanto os grafismos quanto as cores e seus adornos possuem significados importantes e com singularidades específicas no interior de cada sociedade indígena. Para os Tapirapé, segundo Damas (2014), "a pintura está presente tanto em rituais quanto nos afazeres cotidianos, ou quando eles estão fora da aldeia. A cor é um dos principais elementos para se referir à idade e à função da pessoa no grupo."
Damas destaca a posição central que o corpo ocupa na cosmogonia Tapirapé, "seja no momento da caça, dos rituais, das pinturas corporais ou nos rituais xamanísticos. A pintura corporal e o ritual da cura xamânica se dão na relação entre dois corpos". Outro dado importante para a compreensão da sociedade Tapirapé é que "somente as mulheres podem fazer a pintura corporal e apenas os homens podem ser xamãs". (DAMAS, 2014, p. 825-826 ).
Para Silva (2001), na sociedade Kaingang, "o corpo é usado como tela" [...] "de suporte de significados sociológicos, marcas que indicam as metades e os papéis sociais e rituais advindos da nominação". Na contemporaneidade, Silva observa que a pintura corporal Kaingang (Iraí e Nonoai, ambas situadas em RS) está em uso em ocasiões especiais como as apresentações públicas e demais comemorações. No Paraná, também observamos esse uso de pintura corporal em contextos políticos, nas relações de negociação ou retomada de direitos com o Estado, tanto nas questões fundiárias quanto na Educação e Saúde.
Clique no botão a seguir e assista ao vídeo de Kamé e Kairu: revitalização cultural Kaingang.
Entre os Asurini do Xingu, da família linguística Tupi-Guarani,
Os motivos de pintura são comuns a ambos os sexos. A divisão do corpo, entretanto, como critério de distribuição dos desenhos, difere segundo o sexo. Entre as mulheres, o ventre é marcado por um desenho que divide a parte da frente do corpo em duas, verticalmente. Entre os homens, esta divisão se dá no sentido horizontal, isto é, obedecendo à mesma divisão da tatuagem: o desenho nos ombros (...) e linhas horizontais, de ombro a ombro, delimitam a parte de cima que não é pintada. A tatuagem marca, no homem, sua participação nas atividades guerreiras e, na mulher, as fases de ciclo de desenvolvimento biológico e social. (ISA, 2015)
A importância da qualidade ou espessura dos grafismos corporais é lembrada por Lagrou (2010), em seus estudos sobre o povo Kaxinawá. No caso das crianças deste povo, o grafismo "não servia de sistema de comunicação, a informar por meios visuais sobre o pertencimento desta pessoa a determinadas metades ou seções; visava, pelo contrário, a unificar os corpos e cobrir as peles".
Na organização de mundo Kaxinawá:
O desenho cobrindo a pele agia como filtro a deixar penetrar na pele e no corpo os cantos e os banhos medicinais sobre ele aplicados. O desenho abria a pele para uma intervenção ritual e coletiva sobre o corpo da criança, que estava sendo moldado, fabricado, transformado. (LAGROU, 2010).
Para o povo Wayana (PA), da família linguística Karib, de acordo com Velthem (2000):
"O corpo humano deve ser pintado uniformemente com tinta vermelha, à base de sementes de urucum para indicar sua completa socialização".
Acerca da obtenção e uso da tinta do jenipapo, Velthem registrou a narrativa mítica Wayana, a qual houve um tempo em que estes não se pintavam, mas, um dia, uma jovem ao banhar-se num rio, viu alguns frutos de jenipapo boiarem na água. No mito, há também a visita noturna na aldeia, de um rapaz à procura da jovem. Após alguns contatos, em que o jovem sempre desaparecia antes do amanhecer, e com a anuência do rapaz em permanecer, percebeu-se que o corpo deste era todo pintado de motivos negros.
A beleza da pintura chamou a atenção de todos e o jovem ensinou-lhes como fazer. Quando o jenipapo terminou, o casal de jovens foi até o jenipapeiro para colher mais frutos. A jovem não atendeu ao pedido do rapaz para que não o seguisse. Ao fazê-lo, viu uma grande lagarta, pintada com os mesmos grafismos do jovem.
A aplicação dos grafismos do povo Wayana não ocorre somente em seus corpos, mas pode ser observada nos artefatos de seu cotidiano. Além da aplicação da pintura da "lagarta", Velthem observa que também é utilizado pelo povo Wayana o motivo "cobra-grande", elemento mítico que compõe a cosmologia de vários povos da região Norte.
Entre os Xavante, povo da família linguística Jê, o uso de ornamentos traz grandes implicações sociais. Conforme Müller, “a linguagem visual dos enfeites transmite também informações sobre prestígio e transgressão, punição, direito e dever”. Essa significação é tão importante na hierarquização Xavante que se um "indivíduo usa enfeites que não pertencem a sua linhagem, é punido publicamente e o enfeite é cortado e retirado de seu corpo." (MÜLLER, 2000, p. 133).
Além da pintura e adornos corporais, entre os Xavante os enfeites, o corte do cabelo e a furação das orelhas constituem elementos da constituição da pessoa e sua posição social, seu pertencimento clânico e sua função social:
Nos rituais wai'á, elementos pictóricos, enfeites de penas, pulseiras de casca de árvore e diferentes arranjos de cabelo se combinam de maneira complexa, análoga à estrutura do ritual. Comum a todos os participantes do wai'á é a tonsura vermelha, identificando-os como iniciados ao ritual. É a marca correspondente ao furo das orelhas, relacionada com a iniciação à maturidade. A mulher usa a tonsura vermelha por ocasião da cerimônia do casamento. (MÜLLER, 2000, p. 134).
No vídeo a seguir, você poderá assistir ao documentário sobre o ritual Wai'á dos índios Xavante (2000). Filmado em Sony Handycam Digital Hi8. Direção de Rodrigo Guim.
Quanto aos ornamentos, Telêmaco Borba (2009), ao referir-se aos homens do povo Guarani, no início do século XX, descreveu que o uso de "coroas ou cocares de penas amarelas, colares e braceletes de pequenas sementes pretas, enfeitados com as penas vermelhas (...) eram utilizadas nas ocasiões de suas festas". Há referências de pintura facial de homens e mulheres com urucum e jenipapo. Borba também destaca o uso de adorno labial, de uso diário pelos homens, a partir de dez a doze anos de idade:
(...) usam diariamente, no lábio inferior, o tembetá, cilindro longo e transparente, feito de resina do jataí. A cerimônia de furar o lábio é uma das festas mais importantes que fazem, reunindo-se para ela, às vezes os habitantes das tabas de toda uma região. (BORBA, 2009, p. 69)
A pintura e/ou ornamentação corporal é de fundamental importância para a autoafirmação identitária dos povos indígenas. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), numa demonstração de reconhecimento da importância da pintura corporal como forma de expressão complementar aos saberes transmitidos oralmente, concedeu, em 2003, o título de Patrimônio cultural do Brasil à Arte Kusiwa - pintura corporal e arte gráfica Wajãpi, da família linguística Tupi-Guarani.
Segundo a FUNAI, o excepcional valor da forma de expressão dos Wajãpi está na capacidade de condensar, transmitir e renovar - através da criatividade dos desenhistas e narradores - todos os elementos particulares e únicos de um modo de pensar e de estar no mundo, próprio deste povo.
Cabe ressaltar que devido ao contato com as sociedades não indígenas, grande parte dos povos indígenas tem agregado vestimentas, pinturas ou enfeites, dentre outros artefatos, que historicamente, não faziam parte de suas organizações sociais. Contudo, o fato de fazer uso desses elementos externos, não os torna menos pertencentes a esse ou aquele povo indígena. O processo de formação da pessoa indígena, aceitação entre os seus pares, é muito mais complexo do que a mera inclusão de roupagens ocidentais.
Vamos aprender mais com a professora Cristina, ela vai comentar a pintura corporal e os adornos no vídeo a seguir. Confira!
Na atualidade, a confecção da cestaria e esculturas de povos indígenas, por questões de sobrevivência econômica, além das permanências simbólicas e tradicionais, também se envolve de elementos externos à sua identidade enquanto grupo, seja na incorporação de novas cores, materiais ou formas. Essa mudança pode ser observada na cestaria Kaingang, conforme os dois exemplos imagéticos que seguem:
Imagem 10: padrão gráfico téj, produzido por artesã Kaingang da TI Rio das Cobras, Nova Laranjeiras - PR.
Imagem 11: produzido por artesã Kaingang da TI Ivaí, Manoel Ribas - PR.
Fotos: Cristina Cremoneze.
Na imagem 10, o padrão gráfico téj é aplicado na produção de uma miniatura de chapéu, utilizando a taquara como material e como corante, anilina. Na imagem 11, o padrão téj é aplicado numa miniatura de cesto, utilizando como material tiras sintéticas que substituem a taquara.
Nas imagens 12 e 13 a seguir, observamos a manutenção dos grafismos clânicos Kaingang, agregando à taquara sementes de "rosário", plumas de galinha coloridas com anilina e fios de lã colorida. Atenção para a inscrição no detalhe da imagem 13 (um arco). É uma referência ao ano novo (2005), pois a peça foi confeccionada em fins de 2004. Em outras, estava gravado "Feliz Natal":
Imagem 12: chocalho produzido por artesão Kaingang da TI Rio das Cobras, Nova Laranjeiras - PR.
Imagem 13: detalhe de arco produzido por artesão Kaingang da TI Rio das Cobras, Nova Laranjeiras - PR.
Entre os Guarani do Cone Sul, também podemos observar alterações, embora, neste caso, faz-se necessário estudo mais aprofundado, considerando as possíveis distinções entre os Guarani Mbya e os Avá Guarani:
Na cestaria Guarani, também observamos o acréscimo de corante e material sintético na finalização do objeto, observe :
Imagem 16: interior de cesto produzido por artesã Guarani da Aldeia Tapixi, TI Rio das Cobras, Nova Laranjeiras - PR.
Imagem 17: face externa do mesmo cesto.
Fotos: Cristina Cremoneze.
A substituição de alguns materiais na produção de objetos para a comercialização deve-se às dificuldades de se encontrar em algumas Terras Indígenas os seus materiais originais. Essa escassez está vinculada aos períodos de seca da taquara (em suas mais diferentes espécies), de sementes das mais diversas espécies vegetais, alteração na legislação ambiental, novos usos desses elementos, novas demandas (quantidade e qualidade) na produção dos objetos, conforme as solicitações do público a que se destina.
Contudo, no interior das comunidades indígenas, pode-se perceber que para o uso ritual dos objetos, busca-se manter os aspectos mais próximos possíveis desejados pela tradição, diferentemente dos objetos voltados para a comercialização com os não indígenas.
Assista ao vídeo a seguir e conheça um pouco mais sobre o Ajaka Para - Cestaria Guarani Mbya .
Agora, vamos voltar à problematização, como poderíamos estabelecer parâmetros comparativos, considerando a diversidade de cosmologias e padrões de organização de mundo existente da arte e do artesanato nas sociedades indígenas? Se você quiser, assista novamente ao vídeo para relembrar e depois clique em alternativas para responder.
Destacaria a diversidade e singularidade das sociedades indígenas em contraposição aos padrões de arte e artesanato da cultura europeia estabelecidos por determinados segmentos sociais. É importante lembrar que mesmo a cultura ocidental tem suas singularidades e que estas muitas vezes só são percebidas e compreendidas com um estudo mais elaborado do contexto social de sua produção.
A partir da afirmação de Pessis e Guidon (2000), de que "as mais recentes descobertas confirmam que os registros rupestres pré-históricos apareceram de maneira quase concomitante na Europa, Américas, África e Austrália", enfatizaria as proximidades das expressões artísticas e sua relação com as questões inerentes à humanidade, como o sagrado, os ciclos da vida, alianças entre povos, dentre outros.
Boa indicação, pois remete às singularidades do processo de produção das obras e a necessidade intrínseca de pesquisas referentes ao contexto social de sua produção.
Boa indicação, pois o ponto de partida necessário para os estudos e possível compreensão do universo indígena é principalmente o reconhecimento da alteridade e sua(s) dinâmica(s) cultural.
Ótima indicação, pois busca estabelecer proximidades por meio do diálogo entre as produções artísticas de diferentes povos em diferentes tempos históricos.
Neste tema, aprendemos a conceituar algumas das produções dos povos indígenas que envolvem a arte e o artesanato. Destacamos os grafismos, as pinturas rupestres, a pintura corporal, as cestarias e as esculturas.
No próximo tema, estudaremos sobre as contribuições dos povos indígenas na formação do Brasil.
Veja agora o último vídeo em que a professora Cristina faz uma síntese do que estudamos aqui.
BORBA, Telêmaco. Atualidade indígena. Curitiba: Instituto Memória, 2009.
Carta de Pero Vaz de Caminha. Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf. Acesso em: 19 out. 2014.
DAMAS, Vandimar Marques. Vermelho e o negro: a produção de artefatos entre os Tapirapé. In: CHAUD, E. (Org.). Anais do VII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual. Goiânia: UFG, FAV, 2014. p. 822-828.
LAGROU, Erls. Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas. In: Proa – Revista de Antropologia e Arte [on-line]. Ano 02, vol.01, n. 02, nov. 2010. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/proa/DebatesII/elslagrou.html. Acesso em: 02 jun. 2015.
LANGDON, Jean. A cultura Siona e a experiência alucinógena. In: VIDAL, Lux. (Org.) Grafismo Indígena. 2. ed. São Paulo: Fapesp/Edusp, 2000. p.67-87.
MÜLLER, Regina Polo. Mensagens visuais na ornamentação corporal Xavante. In: VIDAL, Lux. (Org.) Grafismo Indígena. 2. ed. São Paulo: Fapesp/Edusp, 2000. p.133-142.
PARANÁ. Ler, escrever e ser Kaingang no Paraná. Curitiba: SEED, 2010.
PARANÁ. Experiências pedagógicas de professores Guarani e Kaingang. Curitiba: SEED, 2010.
PARELLADA, Claudia. Arte e artesanato Kaingang e Guarani no Paraná. In: PARANÁ. Cadernos de Educação Escolar Indígena. Curitiba: SEED, 2006. p. 24-29.
PESSIS, Anne-Marie e GUIDON, Niéde. Registros rupestres e caracterização das etnias pré-históricas. In: VIDAL, Lux. (Org.) Grafismo Indígena. 2. ed. São Paulo: Fapesp/Edusp, 2000. p. 19-33.
Portal da Funai. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao. Acesso em: 04 jan. 2015.
Portal do Instituto Socioambiental (ISA). Povo Asurini do Xingu. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/asurini-do-xingu/1283. Acesso em: 02 jun. 2015.
SILVA, Aracy Lopes da. e FARIAS, Agenor T. P. Pintura corporal e sociedade: os "partidos" Xerente. In: VIDAL, Lux. (Org.) Grafismo Indígena. 2. ed. São Paulo: Fapesp/Edusp, 2000. p. 89-116.
SILVA, Sérgio Baptista da. Etnoarqueologia dos grafismos kaingang: um modelo para a compreensão das sociedades proto-jê meridionais. 367 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
VELTHEM, Lucia Hussak van. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 1, p. 51-66, jan.-abr. 2012.
VELTHEM, Lúcia Hussak van. Das cobras e lagartas: a iconografia Wayana. In: VIDAL, Lux. (Org.) Grafismo Indígena. 2. ed. São Paulo: Fapesp/Edusp, 2000. p.53-65.